

quando um homem desconhecido já te rasgou a pele
e você imagina as mãos de um homem desconhecido
é preciso saber que o mundo
te deve ainda
outras imagens e
outras mãos
é preciso cobrar do mundo
outras imagens e outras mãos
AMÉRICA dá continuidade às pesquisas do dramaturgo e performer Francisco Mallmann. Em cena, um corpo nu articula a performatividade de um discurso, uma fala pública, um palanque. O performer, no entanto, se mantém de costas para o público, um gesto que efetiva dramaturgicamente uma recusa, uma impossibilidade, um entendimento tardio de restituição da fala. AMÉRICA verticaliza as textualidades decoloniais que Francisco Mallmann investiga em seus escritos, articulando epistemologias do sul, transfeminismos e uma identidade de gênero marica - colonizada, terceiro-mundista, em que a vivência homossexual não é dissociada dos marcadores geopolíticos.
Com parceria de criação de Semy Monastier (luz) e Luciano Faccini (dramaturgia sonora), AMÉRICA é um experimento cênico que escapa da própria possibilidade de enquadramento: tanto pode ser uma peça de teatro, uma (re)leitura dramática, uma performance, uma instalação, uma fala pública, um discurso, uma ação. O trabalho foi desenvolvido em residência na Casa Selvática, coletivo/companhia em que Francisco Mallmann e Semy Monastier são artistas residentes.
AMÉRICA é um trabalho que articula em sua feitura ética-estética os deslocamento decoloniais interseccionais reivindicados pelas epistemologias do sul. Em cena, um corpo nu, andrógino, miscigenado performa uma discursividade que mobiliza a noção de dívida. “Tu me deves uma história, América” é a síntese de um gesto que cobra a possibilidade de inscrição de novos imaginários para corpos marcados, estigmatizados e silenciados. AMÉRICA dá continuidade aos projetos em dramaturgia/performance/poesia de Francisco Mallmann, como é o caso de Para Não Morrer (Espaço cênico, 2017), Cabaret Macchina (Selvática Ações Artísticas, com Leonarda Glück e Ricardo Nolasco, 2018), Pinheiros e precipícios (Selvática Ações Artísticas, 2016), Eu não dou a outra face (20minutos.mov/ Rumos Itaú Cultural, 2017) e Haverá festa com o que restar (Urutau, 2018). Um trabalho híbrido entre teatro/performance/fala pública e dramaturgia.
AMÉRICA torna central as discussões acerca dos corpos latino-americanos, fruto de uma violência histórica, colonial, racista e homofóbica. Integram o escopo teórico-artístico do trabalho as contribuições de Audre Lorde, Gloria Anzalduá, Jota Mombaça, Achille Mbembe, Paco Vidarte e Javier Saez. Soa urgente nosso entendimento de comunidade enquanto latino-americanos - um movimento que nos permite deslocamentos em relação a nossa formação geopolítica. Estão interseccionados discursivamente a escravidão, o genocídio indígena e a ditadura militar: violências fundantes e decisivas em nossas sociabilidades, subjetividades e imaginários. AMÉRICA é uma tentativa de articular em palavra-corpo as possibilidades de estancar a sangria.





Francisco Mallmann cria na intersecção entre poesia, dramaturgia, literatura, crítica de/em/sobre arte e escritos ensaísticos. É formado em Artes Cênicas (FAP) e Jornalismo (PUCPR). É autor do livro “haverá festa com o que restar” (URUTAU, 2018), editor do Bocas Malditas – cena, crítica e contexto e é mestre em Filosofia (PUCPR). É artista da/na Casa Selvática, um espaço que abriga artistas interdisciplinares, suas pesquisas, sonhos e criações.